quarta-feira, 17 de outubro de 2012

TEODORINHO TRINCA–FERRO - Final




Dizia que, após a Abolição, os negros ficaram ainda mais sujeitos a apanhar dos soldados e dos capangas dos senhores. Muitos tinham medo de reagir. “Apanhava feito boi teimoso”. Mas quando era um “que eles chamava de capoêra, a coisa ficava diferente. Muito que levantô a mão pra batê nunca mais viu a luz do dia. Recebêro um golpe que não dava tempo para pensá. Caía no chão, estribuchando”― dizia.

CIDADE ALTA E CIDADE BAIXA DO PORTO DE SÃO MATEUS


Dos seus “menino”, o mais valente de todos era Zé Apolinário, “negro fino, de quase dois metro. Batia com uma violência que dava mêdo. Era angico, não tinha carne. Coitado do inimigo. Era cada pancada que desmontava qualqué um. Tinha perna cumprida e arcançava o freguêis longe. Uma cabeçada que pudia derrubá um boi. Era um grande lutadô da Angola. Conhecia a ginga e a mandinga como ninguém”―lembrava.
Depois disso, Teodorinho tomou o rumo do Sapé do Norte. Caiu “no mato” com os companheiros. Vez por outra, aparecia na cidade escondido, “pra cumprá fumo, sal, pólvora, tecido. Mas vivê na cidade não era mais possível. Ia sê briga na certa”. Cada vez mais tinha um maior contingente policial, e aí era vencer ou morrer.
Contava que “esperamo eles no mato, mas nada aconteceu, até nunca mais sê preciso. Mais nunca perdêmo uma briga. Sempre subemo da hora certa e como atacá o inimigo. Eles pensava que nóis ia corrê, mas era pura mandinga, chamando eles pro nosso terrêro. Agora, tô muito velho, mais de cem ano. Mesmo assim, tô pronto pra luta se fô precisão e com os menino que costuma andá por aqui, sempre na vera, que quem pode mais chora menos”―dizia, sorrindo.
Teodorinho falava da capoeira Angola como parte de sua vida―do golpe que deixava o inimigo “estribuchando”―, ainda com gestos rápidos, as mãos espalmadas, os braços em movimentos cadenciados “pra confundi o inimigo”. A ginga do corpo ainda refletia grande equilíbrio, mostrando como arrancar uma faca, um pau ou um revólver da mão do adversário. Ora com suavidade, ora com indescritível força, parecendo um tigre, um crocodilo, um leão do longe das reminiscências da África distante: “É a luta da Angola que faz isso, deixa a gente mais moço”―falava, balançando o corpo no terreiro de chão batido da casa de pau-a-pique no sertão de São Mateus.
Vez por outra, parava para explicar os golpes. A Meia Lua é um em que o jogador rodopia com a perna no ar, podendo acertar o inimigo em qualquer parte do corpo. Para se defender, basta dar uma descida no corpo e partir ao ataque com um Rabo-de-Arraia, aplicado no jogo de baixo, como uma chicotada, procurando atingir a cabeça do inimigo com o lado do pé. Para se defender, é preciso abaixar a cabeça para contra-atacar, com um conhecido como Calcanhar, pegando o adversário de baixo para cima.


Em movimentos às vezes lentos, o velho mestre ia demonstrando os golpes. O preferido era a Chapa de Frente, “violento, derrubava o inimigo com facilidade. Muitos morrero com essa pancada”. Era o que mais se aplicava, dependendo da distância e da posição do adversário. Depois vinha a Chapa de Costas, quando o inimigo pensava que o capoeira tinha indo embora. Para se defender da Chapa, bastava afastar o corpo e voltar ao ataque com uma Cabeçada, a cabeça no peito, no rosto ou no queixo do adversário, de baixo para cima. Ainda se pode aplicar uma cutelada na nuca.



O Mestre Trinca-Ferro vivia ali, no meio daquela floresta de eucaliptos. Havia perdido todos os vizinhos, “que venderam as terra”. Há mais de 30 anos não ia ao Porto de São Mateus. Ainda tinha o pressentimento de que a polícia estava lá, esperando. Já não tinha idade para correr: “Não ia ficá bem”―justificava.
Os gestos de um lutador, a impressionante flexibilidade das articulações, as mãos imensas, os braços em movimentos cadenciados, ora lentos, quase parando, ora rápidos, surpreendentes, faziam-no parecer uma pantera negra em busca de sua presa ou um quilombola enfrentando um capitão-do-mato.

Maquete do Quilombo do Morro construído sobre falésia. 

Teodorinho, ainda criança, presenciara, em 1881, a destruição do Quilombo do Morro ― foi perseguido pela captura e enfrentou preconceito e a prisão pelos “crimes” dos anseios de liberdade. Mas, conhecedor dos segredos do “apercebimento”, que durante os séculos de escravidão serviu de arma contra feitores e capatazes, soube se manter feito um guerreiro africano. O último guerreiro da luta da angola. E também mantinha uma Cabula para curar os males “da carne e do espírito”.

Maquete - Moradias no Quilombo do Morro

A impressão que ficou do velho quilombola jamais será esquecida: ora de um pássaro a desafiar a lei da gravidade; ora de um tigre, um leão, um crocodilo das savanas africanas, sempre com a sua arma ancestral. Uma lenda viva. O lendário Teodorinho Trinca-Ferro, hoje, vive na imaginação do povo e na alma dos "menino" que ainda fazem roda de capoeira no Largo do Chafariz - onde existiu o "pelourinho de maçaranduba" que os escravos retiraram e jogaram no rio -, diante do casario secular do Sítio Histórico Porto de São Mateus - o mais antigo território de lutas contra a escravidão no "Sul da Bahia" e Espírito Santo.
Nunca deixou de ser um quilombola, e, muito menos, de praticar a “luta travada” ou o “apercebimento de guerra”, sempre “pra valê”:
― Na vera, que a Angola não é pra  brincadêra!

Vista atual do Porto de São Mateus, outrora local do PELOURINHO DE MAÇARANDUBA

Agradecemos ao pesquisador Maciel de Aguiar pela concessão da transcrição de parte de sua obra. 
Agradecimentos também aos leitores do BLOGBIMBA, pelo acompanhamento de tão instigante narrativa.


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