segunda-feira, 13 de junho de 2011

A intenção estratégica de MESTRE BIMBA

APRESENTAÇÃO


Do livro A INTENÇÃO ESTRATÉGICA DE MESTRE BIMBA.
(Breve lançamento.)


Na década de 50, século XX, a rotina da criança era simples, porém diversificada. Predominavam brincadeiras singelas, como empinar arraia, jogar bola-de-gude, brincar de quatro cantinhos, fura-pé, trocar figurinhas e outras tantas peripécias da época. Havia também o lado da afirmação machista. As brigas eram comuns e os desafios sempre aconteciam como conseqüência das brincadeiras. Os motivos para iniciar uma briga eram os mais fúteis. Um círculo era formado e os brigões mostravam as suas habilidades na luta corpo-a-corpo. Socos, pontapés, balões, gravatas, chave de braço, e, daí, surgiam aqueles que se destacavam e passavam a ter o reconhecimento do grupo como líder.
As turmas então se formavam em cada parte do bairro. No Engenho Velho de Brotas (1), em Salvador, Bahia, havia a turma da Padaria Tamoio, a da Capelinha e a do Fim-de-linha.

(1) Considerado o segundo bairro mais populoso de Salvador e também um conhecido gueto afro-descendente, a religião africana (o candomblé) é predominante na região, com terreiros respeitados e espalhados pelo bairro. Há também igrejas católicas e evangélicas. Nos anos 50/60 abrigou o CINE TEATRO AMPARO, de propriedade de Crescenciano dos Santos, seu Zezinho. Além de filmes, peças de teatro também eram exibidas. Apesar de semi-analfabeto, o seu construtor, carvoeiro de profissão, como também foi o MESTRE BIMBA, levou a cultura para o extrato social menos privilegiado e do qual fazia parte. Foi uma decisão de vanguarda para a época. O prédio onde funcionava o cinema, hoje é um supermercado. Lamentavelmente o entretenimento e a cultura cederam espaço para o comércio de alimentos. Atualmente a principal festa do bairro é a comemorativa de Santa Luzia (13 de Dezembro). Havia a Festa da Cabloca, infelizmente já extinta, comemorada em 02 de Julho, com desfile em homenagem aos heróis da independência. Existem algumas entidades beneficentes, como a NASPEC (núcleo assistencial de apoio à criança com câncer), GRID (grêmio de reintegração do idoso e de deficientes(dando assistência também às crianças carentes do bairro), aos quais são dados cursos de costura,artesanato e culinária). O Afoxé Badauê nasceu no bairro e um dos seus fundadores, Jorjão Bafafé, referência para os jovens da comunidade, criou em 1982 o bloco Ókánbi. A antiga moradia do artista plástico Pierre Vergè, hoje é um centro cultural visitado por habitantes da comunidade local e turistas. Nele encontra-se uma pequena biblioteca de acervo muito rico, tendo como uma visão maior a identidade e história dos orixás. Aí também são oferecidos cursos de culinária e línguas, e realizados seminários (principalmente acerca da vida dos negros). A Delegacia da Mulher está também localizada neste bairro, atendendo especificamente, aos problemas relacionados ao sexo feminino; contudo, são prestados serviços a ocorrências no bairro e estes encaminhados para as devidas delegacias. No Posto de Saúde Santa Luzia, os moradores da localidade recebem atendimento médico como: vacinação, ginecologia, pediatria, controle da pressão arterial e diabetes. O bairro também conta com uma lavanderia comunitária. Ainda fazendo parte do Parque Solar Boa Vista, há o Cine Teatro Solar Boa Vista onde são realizados shows musicais, peças teatrais, cursos de: capoeira, corte e costura, artesanato; além de palestras para a comunidade local, escolas e encontros para o desenvolvimento do bairro. (Texto adaptado da internet)

Em cada uma delas, o seu líder, o porradeiro. Embates entre as turmas também aconteciam e o líder comandava as brigas, até que uma das turmas desistisse e saísse em debandada. Era o momento de consagração. Festejava-se com brincadeiras, relembrando os momentos da disputa. Era uma molequeira só, “moleques do Engenho Velho”, como os mais velhos os alcunhavam.
Todavia, em tudo isso havia poesia, era lúdico. Pés descalços, nu da cintura para cima e calção de brim, de saco de farinha ou açúcar formavam o traje típico da molecada do bairro. Nas festas populares do bairro, rico em manifestações das culturas escravocrata, indígena, portuguesa e espanhola, as turmas estavam lá. Dois de julho, procissão de Santa Luzia, mês de Maria, reza de Santo Antonio, São João com suas fogueiras e balões colorindo o céu durante o dia e iluminando-o à noite.
O Cine Teatro Amparo era o ponto de encontro da molequeira nos domingos à tarde e também na segunda-feira, após os dois filmes, um dos quais era sempre de cowboy. A molecada fazia o possível para conseguir o dinheiro do ingresso: vendia figurinhas, revistas, trocava por ingresso, vendia frutas, tomava emprestado e havia os que os pais sempre davam. Era uma festa só. Sentavam-se próximos, em duas ou três fileiras, e ali assistiam aos filmes. Gritos risadas, batidas das carteiras e outros barulhos para extravasar as emoções dos filmes. Bater cadeiras era proibido e, vez ou outra, um guarda, maldosamente tirava o quepe e sorrateiramente sentava-se na fileira de trás. Quem fosse observado batendo carteiras, era tirado à força pelas orelhas e, às vezes, guardas mais exibicionistas sacavam a arma e encostavam-na ao pescoço do moleque. Os guardas eram temidos, pois as armas eram por eles portadas como se fossem cowboys. Quanta vergonha. Em casa os pais censuravam o comportamento:
“ Você me envergonha, sair do cinema puxado pelas orelhas, dizia rigorosamente ”.
Às vezes, até se apanhava com cinto de couro ou cipó, mas tudo isso era tolerado. Era normal na época, afinal, na escola apanhávamos quando errávamos a tabuada e em casa os nossos pais nos batiam, davam surra, como se dizia na época. Havia até os pais famosos, os mais severos, cujos filhos apanhavam por qualquer bobagem.
A repressão imposta pela cultura era severa. Os meninos, na pré-adolescência e na adolescência, viviam climas de violência e repressão e não se importavam com isso. A sociedade tolerava e até incentivava, elogiando os pais que mais rigorosos eram com seus filhos. A criança não era respeitada, não era tratada com civilidade, mas com arrogância e escárnio. E aceitavam sem reclamações.
Talvez, até por isto, em outros ambientes, como cinema na cidade, escola fora do bairro, com flertes com garotas e até mesmo com a namorada em outros bairros, tinham vergonha de dizer que moravam naquele bairro. O rolo social impunha e nós aceitávamos a condição de inferioridade. Era uma luta interna muito forte vencer o preconceito contra os mais pobres e cerca de 90% da população do bairro assim o era.
Eles tinham que se impor, às vezes até pela violência, e na maioria das vezes era dessa forma, pois sabiam brigar. Era a diversão. Também tinham os momentos de glória, quando alguém de outro bairro namorava alguma garota da área. O namoro até acontecia, mas tinha que ser negociado. Ou se agregava à turma, se nele fosse reconhecido alguma qualidade, ou caía fora. Mas, depois de algum tempo essas picuinhas eram esquecidas.
Na Primavera e no Verão, as incursões nas roças em busca de fruta, competiam com as tardes de cinema. O bairro era privilegiado, com bom clima, vegetação densa e diversificada, frutas variadas: cajá, jaca, caju, manga, pitanga, abiu, abacate e banana, sem falar nas raízes comestíveis: inhame e aipim.
As ruas não possuíam calçamento, o esgoto corria pela frente das casas e poucas tinham luz elétrica e água encanada. Ônibus, popularmente chamados de “marinete”, eram os únicos veículos que transitavam no bairro.
Bonde era também veículo da época, mas não entrava no bairro. Passava ao largo, contudo não deixava de ser, também, um meio de diversão: subir e pular dos bondes em movimento, esquivando-se dos cobradores, fazia parte das brincadeiras da época. Vez por outra a notícia de algum moleque que escorregou ao despongar e teve a perna ou o braço decepado pelas rodas de aço do bonde deixava a molecada assustada. O medo tomava conta, mas com pouco tempo era esquecido.
Havia também os valentões, adultos respeitados até pela Polícia: Meia-noite, Tarzan, Meio-quilo, Juriti, Nelson Malvadeza, os quais passavam a maior parte do tempo jogando dados e pegando maromba, aparelho que consistia em duas latas de gás cheias de cimento, brita e areia ligadas por uma barra de ferro.
Boinha, Qeqeu, Soló (2), Zé Vergaço, Zé Formiga, Pinduca, da turma da Padaria Tamoio; Roberto, da turma do fim-de-linha; Fanta, Guerra e Joel, da turma da Capelinha. Eram os apelidos da época.

(2) Apelido do autor, o qual levou a proposta para a turma de ingressar em uma academia de capoeira

Foi esse grupo, na faixa etária de 13 a 16 anos, que no início dos anos 60, orientado pelo espírito aventureiro resolveu entrar numa academia de luta, após embate com turma de outro bairro no qual levou desvantagem.
E lá se foi o bando, de uma só vez, para a academia de Mestre Bimba, localizada no primeiro andar de um sobrado no Maciel, zona do baixo meretrício (3) de Salvador, o “putero”, como se chamava na época.

(3) Local onde as mulheres praticam ato sexual por dinheiro.

Não sabíamos que no bairro em que morávamos nasceu o Mestre que agora procurávamos. Como que conspirando em favor da molecada, as forças do universo nos levaram para o aprendizado da luta que mais se adequava ao modo de vida que levávamos. Capoeira, luta musicada e alegre, como era a nossa vida, pois os embates corporais entre os pares e entre as turmas também eram uma forma de diversão.
Não imaginávamos que a modalidade que passamos a praticar - a Capoeira Regional - foi uma forma de luta criada pelo Mestre da academia que passamos a freqüentar e que, por detrás daquele método havia uma história. Uma história de determinação, perseverança, inovação, estratégia e, principalmente, uma história de mudança cultural.
Centro de Cultura Física e Regional da Bahia era o nome da academia.
No nosso primeiro contato com aquela figura enigmática, mas, inspiradora de confiança, nos foi perguntado:
- São estudantes? (4)

(4) Somente era matriculado na academia estudante ou trabalhador.

Então, colocamos o nosso nome em um livro, tipo livro de atas, pagamos dois cruzeiros (Cr$2,00) pela matrícula. Individualmente nos foi solicitado fazer um movimento chamado “queda de rim” e deslocamento com a ajuda do próprio Mestre. Já iniciamos a primeira aula com ele, o Mestre, pegando em nossas mãos, mostrando a base do jogo da capoeira: o gingado.
Saímos orgulhosos. Agora sim, estaríamos prontos para o que desse e viesse (5)

(5) Sem qualquer motivo plausível, as brigas foram diminuindo até desaparecerem. Não sabemos se porque estávamos crescendo ou porque a agressividade era deixada na academia.

Se nos anos 50 do século passado vivíamos sobre forte constrangimento social por pertencermos a um segmento da sociedade menos favorecido, com pressões de toda ordem, fico imaginando como não seria nos anos 20, quando o menino Bimba tinha a nossa idade. Seguramente que o preconceito e a violência contra a criança eram mais veementes, mais constrangedores, mais humilhantes. Se as crenças e valores dos anos 50 são hoje considerados abomináveis, imaginem nos anos 20!
A diferença entre o menino Bimba dos anos 20 e os moleques dos anos 50, é que estes aceitavam passivamente aquela realidade, enquanto que o menino Bimba vislumbrava mudá-la.
Este livro homenageia as ações de uma mente visionária, determinada a modificar o status quo de um segmento social desprezado e violentado pela sociedade da época. Mostra a intenção estratégica e as ações subseqüentes que retiraram do limbo uma autêntica manifestação cultural, a capoeira, correlacionando as iniciativas estratégicas do memorável Mestre Bimba com a Teoria das Estratégias Competitivas de Michael E. Porter. Portanto, é um livro para os amantes da arte da capoeira, para os estudantes de Administração e para os que sonham.

Josué Menezes

Nenhum comentário: