sábado, 28 de maio de 2011

Conversando com Mestre Bimba (Ficção/realidade)

CONVERSANDO COM MESTRE BIMBA
(Anônimo)


Iê! quem foi seu Mestre
Menino, quem foi seu Mestre?
Mestre foi Salomão,
Discípulo que aprendo,
Mestre que dou lição.
O Mestre que me ensinou
Engenho da Conceição.
Só devo é o dinheiro
Saúde e obrigação,
O segredo de São Cosme
Mas quem sabe é São Damião, camarada...
Água de beber, êh!

Desde o meu primeiro contato com a Capoeira Regional, anos 60 sec. XX, que os toques de berimbau, o bater dos pandeiros e os cânticos me intrigavam, me encantavam. A curiosidade em saber o que estava detrás de cada frase instigava a minha vontade de conhecer. Quanto mais ouvia as gravações, em LP de vinil, a curiosidade mais se acentuava. Os toques eu tentava reproduzi-los em berimbau feito pelo próprio Mestre. Como lamento tê-lo perdido. Negligenciei na sua conservação. Decorridos mais de 40 anos, o fato ainda me fascina. Então, vadiei nos versos de Mestre Bimba e pude perceber que ele, com sabedoria, introduziu uma entonação própria, peculiar, dando-lhe por complemento o som do berimbau e do pandeiro, acompanhando os cânticos das Quadras e dos Corridos, passando a transmitir por essa via princípios e valores para os seus alunos, estabelecendo, dessa forma, um estilo de conduta, como se fosse um código de ética, o qual passava a ser praticado por todos e de forma consistente penetrava no imaginário de cada um.
Hoje, tenho sobre isso uma visão muito clara. O que ele pretendia era desenvolver uma cultura corporativa, um estilo de comportamento para o jogo e para a vida, que diferenciasse o seu aluno dos praticantes de capoeira de outras rodas, sem, contudo, desmerecê-las, porque isso era fundamental para o seu projeto de mudança. A capoeira em que foi iniciado, anos 20 do século passados, estava sendo praticada de modo diferente do que ele aprendera. Não concordava com a postura dos capoeiristas da época, os quais, para ludibriar a repressão policial a praticava como “coisa para o turista ver”, no seu dizer. Apanhar dinheiro no chão com a boca não era capoeira, era outra coisa que ele nem qualificava. Capoeirista estava sendo sinônimo de arruaceiro, de mau elemento, daí ela ter sido incluída no Código Penal como pratica delituosa, sujeitando os seus praticantes ao cerceamento da liberdade. Ele considerava injusto o status quo que predominava e na sua visão era preciso extirpar esse preconceito. Tentou aglutinar os Mestres da época, dentre eles Mestre Pastinha, apresentando uma nova forma de ensinar e praticar a capoeira. Não teve o apoio desejado, mas, não desistiu, partindo sozinho para o confronto desigual. Criou a Capoeira Regional e a força do seu pensamento dotou-lhe de clarividência e senso de oportunidade para reintegrar socialmente a arte e encaminhá-la para o reconhecimento como luta nacional. Ele sempre teve essa visão e quem com ele conviveu é testemunha dessa sua intenção.
Gestos, atitudes e ações sempre foram os diferenciais da turma de Bimba.


A CONVERSA.

Treinava na aula das 16 horas e ficava para assistir as seguintes, até as 19 horas. Apreciava os grandes capoeiristas da época: Saci, Camisa Roxa, Cabeludo, Cascavel, Onça, Itapoan, eram os mais hábeis. Chegava sempre às 14 horas e invariavelmente o encontrava debruçado na sacada do primeiro andar do prédio na rua onde era a academia.
Certa feita, depois de cumprimentá-lo e dar notícias de Crispim, perguntei:

CRISPIM, filho de Mestre Bimba, era interno do Hospital Juliano Moreira. Os garotos do Engenho Velho de Brotas, onde se localizava o hospital, freqüentava o campo para jogar bola com os internos que eram considerados calmos, e Crispim era um desses, o qual apesar de não jogar bola, ficava nas proximidades e nós conversávamos com ele, dando e levando noticias ao Mestre.

- Mestre, por que o segredo de São Cosme quem sabe é São Damião?
- É o princípio, o regulamento. Segredo não se revela porque não se pode trair a confiança de quem lhe confidencia alguma coisa. (Lealdade)
- Preste atenção, continuou: Menino quem foi teu Mestre, meu mestre foi Salomão (Sabedoria), sou discípulo que aprendo (Humildade), sou mestre que dou lição (Compromisso). O mestre que me ensinou está no Engenho da Conceição, só devo dinheiro, saúde e obrigação, o segredo de São Cosme quem sabe é São Damião. Tá mostrando que a lealdade se fundamenta em sabedoria, compromisso e humildade. De tanto você cantar, essas coisas vão se tornando habitual, passa a ser o seu jeito de ser. A sua explicação foi interrompida pelo chamado de Mãe Alice
- Mestre, tá pronto!
Levantou-se e saiu mansamente caminhando para o seu cubículo. Estava na hora do seu café.
Mestre Bimba, era assim. Se você o indagava sobre algum fato ele respondia didaticamente, mas interrompia a qualquer momento e se afastava sem a menor preocupação. Contudo, pacientemente ele esperava que você retornasse ao assunto e se não o fizesse, ele procurava uma forma sutil de satisfazer a sua curiosidade. Comigo não foi diferente. A timidez associada ao medo respeitoso de me dirigir ao Mestre por receio de incomodá-lo, me conteve. Dei um tempo.
Como sempre acontecia, cheguei mais cedo na academia e o encontrei cantando uma quadra. Parei para ouvir. Ato continuo, disse:
- Sabe, a música é mais fácil de decorar e de fazer as coisas que ela diz...

Ah! tamo na escola
Oiah! aprendendo a ler
Ih! carta de ABC
Ah! faca de ponta
Iê! sabe furar
Iê! quer me matar
Ah! viva Deus do Céu
Ah! Viva meu Mestre
Iê! que me ensinou
Oiah a malandragem
Iê vorta do mundo

Capoeirista não pode ser analfabeto, tem que saber ler senão não sai do lugar onde tá. A ignorância é como faca afiada que fura e penetra no coração, e agente nem sente, mas ela mata, aos pouco, mas mata. E aqui o aluno vai aprender isso, vai despertar para isso que ele nem sabe. Mas cantando vai saber, e tá pronto prá sair pro mundo porque a malandragem que é o saber, e não coisa ruim como se fala, malandragem é ser esperto, é saber sair de situação difícil, se safar, mas sem prejudicar ninguém, a não ser em último caso. Primeiro lugar Deus, depois a sabedoria que você aprende.

Naquele dia não fiquei para as aulas seguintes. O que ouvi me deixou confuso porém reflexivo e comecei a observar pequenas transformações que estavam se processando comigo e no comportamento em grupo. As brigas não mais aconteciam, os conflitos eram resolvidos de outra forma, as turmas começaram a se misturar, e as conversas tinham agora outro foco. Pensávamos em moda, calça jeans, blusão de coro, Rock, Twist, Roberto Carlos, Wanderléia, Rita Lee, Baby Consuelo. Apesar de serem grandes temas da época, comunismo, imperialismo e militarismo, não entravam no nosso radar. Estávamos crescendo, amadurecendo, adquirindo autoconfiança, introduzindo novos valores e fortalecendo princípios, os quais hoje entendo perfeitamente após ler Franklin Covey. Ele demonstra como os princípios são imutáveis, são resistentes às fronteiras. Têm o mesmo significado em qualquer parte desse nosso minúsculo planeta, mas grande o suficiente para esbanjar diversidade, e nessa diversidade, eles, os princípios, significam a mesma coisa.
Quando a conduta é alicerçada por princípios, o respeito é irradiado e em quaisquer circunstâncias ele está presente. Assim era o Mestre. Através do olhar, de uma frase curta, de um gesto, demonstrava para os seus alunos o seu código de conduta. Mais do que ninguém que eu conheça, o seu exemplo valia mais do que mil palavras. Assim são os líderes, ensinam pelo exemplo.

Valha-me Nossa Senhora
Mãe de Deus o criador
Nossa Senhora me ajude
Que Nosso Senhor me ajudou, camarada
Êh! Água de beber
Êh! aruandê
Joga pra lá
Eh campo de mandinga
Eh mandigueiro
Eh cabeceiro, sabe jogar
A capoeira,
Regional
Vorta do mundo


-Você acredita em Deus? Certa vez me perguntou a queima-roupa, mas não esperou a resposta e foi dizendo:
- O homem pensa que sabe mais, mas não sabe, e deu uma longa gargalhada. É como o namoro. O homem pensa que conquista a mulher, mais é ela que deixa. Quando a mulher percebe que o homem merece ela faz tudo, mas manda logo embora quando ele não merece. As vezes dá até chance. Assim é Deus. Ele lhe ajuda se você merece, ele lhe diz o que fazer e você nem percebe, ele lhe mostra a toda hora, é só vê! Seu corpo fica fechado quando você acredita nele. Levantou-se, indiferente à minha presença, e caminhou em direção a Mãe Alice que apareceu na porta do seu cubículo. Era o seu café que estava pronto. Saiu resmungando baixinho:

Valha-me Nossa Senhora
Mãe de Deus o criador
Nossa Senhora me ajude
Que Nosso Senhor me ajudou, camarada
Êh! Água de beber

Foi como se me dissesse: presta atenção, essa é a lição de hoje.
Percebi então a força da comunicação de Mestre Bimba. Passei a compreender a grandeza dos seus versos e o alcance espiritual das mensagens.
Quando vejo capoeiristas tatuando a face de Mestre Bimba no corpo e exibindo-a com orgulho, retorno ao passado e me felicito por ter vivido naquela época.



Certa feita cheguei na academia com marca de mordida no pulso do braço esquerdo, logo notada pelo Mestre. Com um sutil sorriso no canto dos lábios começou a cantar:



Êh! Água de beber
Êh! aruandê
Joga pra lá
Eh campo de mandinga
Eh mandigueiro
Eh cabeceiro, sabe jogar
A capoeira,
Regional
Vorta do mundo

O que foi isso? Brigou com a namorada, porque homem é que não foi, completou em tom brincalhão, numa das raríssimas vezes em que isso acontecia. Envergonhado, contei-lhe como a briga aconteceu e como eu tomei a mordida. Ouviu e nada me disse, porém sei que não gostou, e foi pela briga.

Em 1969 fui convocado para trabalhar no interior do estado. No Natal de 1970 enviei um cartão para Mestre Bimba, com frases alusivas ao natal impressas em uma foto. Desde que fui para o interior, poucas foram as vezes que retornei na academia.
Na década de 70, anos com intensas movimentações políticas, não havia telefone celular e nem internet, somente telefone fixo que era um teste de paciência tentar uma ligação.
Assim, não acompanhei o que acontecia fora do cenário em que me encontrava inserido.
A última vez que fui na academia encontrei Ezequiel (já falecido) dando aula, e foi aí que tomei conhecimento do que acontecera. A academia passou a ser de Vermelho, o Mestre foi prá Goiânia e lá faleceu, foi a notícia que recebi. Mudei a roupa para treinar, mas não tive vontade, principalmente porque fui tomado pelas mãos e levado para o centro da roda a fim de que aprendesse a gingar. Agradeci e nunca mais voltei. Descendo as escadas, lembrei do que o Mestre dizia: “quando eu morrer em cada esquina vai aparecer um mestre de capoeira”. A profecia estava se confirmando. (Anônimo)

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